Há exatos 70 anos, era lançado “Rio, 40 graus” (1955/disponível no Telecine), filme dirigido por Nelson Pereira dos Santos (1928-2018) que revolucionou o cinema brasileiro e teve significativo impacto internacional. A obra pode ser descrita como prosseguidora e precursora de dois grandes movimentos cinematográficos. Do Neorrealismo (Itália, anos 1940 e 1950), de Roberto Rossellini (1906-1977) e Vittorio de Sica (1901-1974), trouxe a filmagem em locações reais, o uso de atores não profissionais e a abordagem do trabalhador pobre em sua luta pela sobrevivência. Ao Cinema Novo (Brasil, anos 1950 a 1970) legou ainda o engajamento social e a produção de baixo orçamento.
Ao romper com o cinema industrial, “Rio, 40 graus” buscou novas formas de narrativa cinematográfica. Houve a opção de filmar nas ruas e favelas sem a iluminação controlada dos estúdios, capturando a luz natural e a atmosfera da cidade. Essa escolha estética deu ao filme um caráter quase documental. A montagem inovadora permitiu entrelaçar diversas histórias e cenas de diferentes pontos da cidade. A fluidez das sequências fez compreender o ritmo do cotidiano carioca da época, ao mesmo tempo vibrante e caótico. A trilha sonora, por sua vez, despontou como elemento narrativo e temático ao revelar a voz das favelas e a cultura popular da cidade. A música “A Voz do Morro”, de Zé Keti, por exemplo, era como um manifesto social e político dentro do próprio filme.
O trabalho dos atores em “Rio, 40 graus” contrastou radicalmente com o estilo de atuação predominante no cinema brasileiro da época, que era frequentemente teatralizado e rebuscado. O uso de atores não profissionais, privilegiando crianças e adolescentes das favelas, deu autenticidade ao filme, já que havia a valorização de expressões e comportamentos do cotidiano dos intérpretes. Por conta da filmagem em ruas, praias e comunidades, numa imersão em cenários realistas, houve a interação com a vida da cidade e até mesmo com pessoas que não faziam parte do elenco. Dessa forma, foi grandemente superada a artificialidade que os estúdios impunham aos atores.
Por fim, vale lembrar que “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964/disponível na Amazon), de Glauber Rocha (1939-1971), deu continuidade ao projeto de “Rio, 40 graus” de revolucionar a linguagem cinematográfica e abordar as questões sociais, políticas e culturais do país. O realismo de Nelson Pereira dos Santos é consolidado e radicalizado no filme de Rocha, considerado a obra-prima do Cinema Novo. Em termos de ambientação, houve, no entanto, uma passagem da cena urbana ao universo mítico-sertanejo, com a revelação da miséria, do misticismo e da violência do nordeste brasileiro. A experimentação formal e sofisticação teórica do baiano Glauber Rocha, o principal ideólogo do Cinema Novo, fizeram com que ele fosse conhecido como um dos cineastas mais importantes do cinema mundial. Contudo, parece pertinente dizer que não haveria “Deus e o Diabo na Terra do Sol” sem “Rio, 40 graus”.