Eventualmente surge um gênio em alguma área da cultura. Foi o caso de David Keith
Lynch. Até difícil saber por onde começar. O cineasta estadunidense, nascido em 20 de
janeiro de 1946, era também artista plástico, músico e ator. Certamente um dos raros
diretores de cinema a ter uma visão especial da arte, como algo que superava as
limitações da realidade.
Foi indicado aos seguintes prêmios da indústria cinematográfica: Oscar (quatro),
BAFTA (dois), Emmy (oito), Globo de Ouro (quatro) e SAG (um). Vitórias? Nenhuma.
Isso demonstra certamente a perspectiva estreita dessas premiações. Mas ele pairava
acima de toda desconsideração. A valorização de sua obra nunca dependeu de
condescendentes honrarias honorárias ou de benesses da Academia, tão valorizadas até
mesmo por cineastas prestigiados.
Na área da crítica especializada, Lynch teve um reconhecimento mais adequado. No
Festival de Cannes foi laureado duas vezes: por “Coração Selvagem” (1990/Prime) e
“Cidade dos Sonhos” (2001/Prime). Recebeu também dois prêmios César de Melhor
Filme Estrangeiro: “O Homem Elefante” (1981/Prime) e novamente “Cidade dos
Sonhos”.
Em 1990, em parceria com Mark Frost, criou a série de televisão “Twin Peaks” (1990-
1991/Mercado Play), que redimensionou o gênero ao combinar mistério, horror, drama
e fantasia. Sem ela não haveria, por exemplo, a série de ficção-científica “Arquivo X”
(1993-2001/Disney+), menos pelo horror ou pela ausência de lógica e mais pela
atmosfera sombria. “Twin Peaks” conta a história do idiossincrático Agente Especial do
FBI Dale Cooper (Kyle MacLachlan) em sua investigação do assassinato brutal da
estudante do colegial Laura Palmer (Sheryl Lee) numa cidade do interior, às voltas com
o sobrenatural e mistérios bizarros.
O ator estadunidense MacLachlan (1959) é, aliás, a face mais conhecida do cinema de
Lynch. Viveu o superpoderoso e messiânico Paul Atreides em “Duna” (1984/Prime) e
Jeffrey Beaumont em “Veludo Azul” (1986/Prime), um estudante universitário que
volta a sua cidade natal e descobre uma complexa conspiração criminosa, numa
encenação marcada pelo suspense e pelo estilo neo-noir.
Justamente a atração pelo aspecto obscuro da existência caracteriza a obra de David
Lynch. Em “O Homem Elefante” é contada a história de um indivíduo severamente
deformado que mora em Londres no fim do século XIX e é “escravizado” para ser
usado como atração em show de aberrações. “Coração Selvagem” apresenta os amantes
Lula (Laura Dern) e Sailor (Nicolas Cage) em fuga desenfreada da mãe dominadora
dela, Marietta (Diane Ladd), que contrata criminosos para matá-lo. Já “Cidade dos
Sonhos” traz a atriz iniciante Betty Elms (Naomi Watts) em sua chegada a Los Angeles,
onde conhece uma mulher com amnésia que se recupera de um acidente de carro. Nesse
filme de arte há, mais uma vez, traços de surrealismo e mistério neo-noir.
Personagens excêntricos chegam, fogem, voltam e buscam sobreviver no cinema de
David Lynch, esse artista genial que mundo acaba de perder. Ele morreu cinco dias
antes de seu aniversário, tornando o dia 20 de janeiro deste ano ainda mais desolado.