Como sempre tive sede de independência, desde criança me sentia preso em família, planejando aventuras ou voos que só a literatura, naquela fase, era capaz de me dar. Depois vieram o encontro com o cinema e a possibilidade de me transportar além do espaço da minha cidade, por mais que a maioria dos filmes em cartaz fosse de caratê ou faroeste, que não me entusiasmavam. Aos dez anos, entrei não sei como em uma matinê de “Tommy”, a ópera-rock, e tive a sensação que só entenderia melhor aquilo muitas décadas depois.
A TV era uma companhia constante, mas, é estranho, pensava no mundo dela como algo familiar, pouco ambicioso. Saí de casa às vésperas dos 16 anos para estudar em um colégio interno, outro lugar limitado para minha “alma repleta de navios”, como escrevi num poema. Mas os anos foram passando, nunca mais revi “Tommy”, e outras histórias me conquistaram. Viajei bastante e me senti deslocado como o protagonista de “O estrangeiro”, de Albert Camus. Assim cheguei aqui e a cidade virou de alguma maneira meu país.
No domingo, depois de ver pelas ruas do Rio os fãs de Lady Gaga, meninos e meninos de mãos dadas, meninas namoradas, ter rido um pouco (só pela TV porque eventos grandes para mim são um disparate ambiental), constatei uma certa bonança depois do frenesi. Como se fosse recuperada uma normalidade que inexiste por estes lados: bicicletas em mão e contramão na mesma pista, pequenas motos que abrem caminho e o transeunte que salve-se se puder. Uma pequena montanha de lixo foi esquecida pelos garis no sinal em frente ao metrô. Uma moça passa e joga mais um papel para aumentar a pilha de destroços. O caos é a norma. Quase por acaso me deparei com uma feira de artesanato de povos originários no Museu da República. Eles não tinham pressa de me vender e escolhi uma camiseta com calma, a estampa andina me deu conforto como se eu fosse um deles. Até que vejo as penas dos cocares e penso nos bichos: de onde vieram, estarão mortos? Como andava na mata a onça da qual agora só se avista a pele? Ao olhar para cima vi que as palmeiras imperiais estavam mais bonitas do que nunca, o domingo foi ameno. A única coisa de que ainda me sinto refém é do tempo e do início dos Eclesiastes: “Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu.” Não vou transcrever aqui toda a enumeração desse que talvez seja o mais belo livro da Bíblia (recomendo a leitura integral). Por aqui, ainda é tempo de falar, e a temperatura continua amena, mas não sei até quando.