Mais do que saber como a inteligência artificial está se expandindo no mundo, me surpreende como as pessoas estão se aproximando dela. Pelas redes sociais, pelos amigos ou no noticiário têm chegado até mim histórias que parecem saídas do filme “Ela” (2013), de Spike Jonze, no qual Joaquin Phoenix interpreta um escritor que cai de amores por um programa de computadores que interage como uma boa companheira para ele. Só que não era bem assim…
Soube de uma conhecida que tem sumido de todos os seus relacionamentos: nem a família nem os melhores amigos sabem dela. Numa das últimas conversas que tivemos, ela confessou que estava tendo longas conversas com a Inteligência Artificial, discutindo aspectos da vida dela que vinha considerando difíceis de resolver, ainda que “resolver” não fosse bem o verbo mais adequado para a situação, pois são questões de uma existência inteira. Ou seja: está fazendo da IA sua terapeuta, pensando, também, claro, em economizar sessões no divã. Coisas como trabalho, amores, dinheiro, saúde, em resumo, sonhos e projetos de vida que ela alimentou e que não têm, digamos assim, correspondido inteiramente às suas expectativas (que não são poucas) e incluem uma turnê pelo mundo onde trabalharia como nômade digital (ela jura que isso é possível para quem não é influencer). Ainda bem que ela me contou tudo isso por telefone, porque meu queixo arrastava no chão a cada confissão dela sobre o conforto imediato que conversar com a Inteligência Artificial vinha lhe proporcionando.
A moça em questão anda com paciência zero para os humanos: “É muito mais prático do que conversar com um analista, sabe? E eu não pago nada por isso. A IA tem me dado dicas muito boas”, disse ela, acrescentando que estava aproveitando também para afinar seu inglês, um pouco enferrujado depois de ter voltado de seu exílio voluntário no país de seus avós. Além disso, ela acrescentou que a IA não reclama de nada. Por essa e por outras, deve ter apagado meu telefone de sua lista de contatos. Não posso nem reclamar para a IA, porque não sei se ela usa o ChatGPT, Gemini ou o quê.
Meu amigo não está desaparecido, mas já esteve. Reapareceu depois de meses ausente. Pensei que, quem sabe, tivesse se mudado para alguma cidade distante do Rio para montar uma comunidade ou jardim à la Epicuro, como ele gosta de dizer. Ele reapareceu dizendo que está com agenda cheia, pois dá aulas para o Ensino Médio, e pegou turmas extra para fechar a semana e o orçamento. Pois ele também está de graça com a Inteligência Artificial. “Tenho preparado aulas com a IA e me ajuda muito.” Como assim, perguntei. “Ah, basta preparar bem o prompt”, retrucou ele, já se considerando um especialista no assunto.
Costumo dizer que meu amigo é uma das pessoas mais inteligentes que conheço, entende de computadores, celulares, faz e acontece com os aplicativos disso e daquilo, aprende rapidamente qualquer assunto que a vida tecnológica coloca na sua frente. Os alunos também estão usando muito a IA, me diz ele, a questão é que não sabem como usar isso bem. Mas, cá entre nós, isso vale para tudo, não?
Mas o que mais me surpreendeu na conversa com meu amigo é que ele deu uma resposta no zap que me pareceu excessivamente editada, então lhe perguntei “É você, IA?” E não é que o camarada, na maior cara-de-pau, me disse que sim, que aquele texto era de IA. A questão é complexa para explicar aqui, só que passei a desconfiar que aquela troca toda de mensagens era uma criação virtual da IA. Fica aqui um autorretrato realizado pela própria IA para especular como seria se fosse um humano: ar tranquilo, cara de bom moço. Será ou não será, eis a questão.