A última semana do verão trouxe uma série de chuvas, que coincidiram com uma sucessão de tarefas extenuantes. Como se minha lista de obrigações tivesse sido esgotada, retomo a arrumação de livros, já que não há mais estantes onde acomodá-los. Às vezes fazer alguma coisa mais trivial repousa a mente como uma espécie de meditação, seja lavar a louça ou reorganizar os livros, dividindo todos por temas, em pilhas que não param de crescer. A tentação de folhear cada volume é um atraso que faz com que a tarefa pareça interminável.
No meio desse “feng-shui” das estantes, encontro uma pasta com um grande número de cartões postais, alguns recebidos de amigos, outros em branco; já fui um colecionador. No meio deles está um postal do Moulin Rouge, famoso cabaré de Paris. No verso do postal, leio: “Avec très bon souvenir, L. Sauvage”. Ora, não é que há poucas semanas tinha me lembrado dela, depois de mais de décadas? Madame Sauvage era uma senhora egípcia que conheci em Asnières-sur-Seine, ou simplesmente Asnières, subúrbio de Paris, onde passei uma temporada entre 1987 e 1988. Reencontrar seu postal, que ela me deu no final do ano que passei no apartamento da família Brunelle – de quem era vizinha e que me hospedava nesse período –, me fez pensar na história dessa senhora em Paris. Ainda me lembro da recomendação que madame Sauvage (o nome me encantou desde o início) me deu para alugar um pequeno “estudiô” sem chuveiro, explicando que fizesse minha higiene pessoal com luvas de toalha, à maneira dela, por décadas, no pequeno apartamento em que morava. Ela vivia sozinha desde a morte do marido, que era francês.
Com o postal na mão, me pergunto por que ela teria me dado um cartão justamente do Moulin Rouge, fato ao qual não dei a menor importância nos meus vinte e poucos anos. Hoje especulo que ela tenha trabalhado lá e tido um passado de dançarina, mas talvez eu esteja influenciado pelas lembranças dos livros de Agatha Christie, best-sellers da minha infância. Baixinha e falante, já na faixa dos 80 anos quando a conheci, madame Sauvage me contou algumas passagens da sua chegada à França, mas não tive a perspicácia de registrar isso por escrito, já que a época era intensa demais e os meus recursos materiais eram reduzidos. Não me lembro de tudo o que ela me disse, mas ficou a ênfase para que eu, a exemplo dela durante a guerra, persistisse para ficar na França.
Não aluguei o apartamento e deixei Asnières logo em seguida, e nunca mais soube de madame Sauvage. Tampouco sei dos Brunelle, além de uma notícia lida na internet sobre o acidente com a filha deles, que teria caído tragicamente de uma janela na escola. Apesar de todas as evidências, espero que a história seja apenas uma coincidência de nomes. Madame Sauvage certamente não existe mais, mas espero que meus amigos do passado possam ter atravessado bem essa tormenta. Às vezes, mais do que folia, a vida parece uma sucessão de quaresmas.