O livro “Ioga”, do escritor francês Emmanuel Carrère, provoca o leitor desde a
capa, de Violaine Cadinot. A ilustração, reproduzida aqui, mostra um homem
saído de um poço escuro, vestindo apenas o que parece ser um calção branco,
como um lutador de arte marcial, e me capturou mais do que a sinopse, que
promete descrever a vivência do autor em um retiro de dez dias de meditação
vipassana, com o propósito de “ver as coisas como elas são”. Tal ilustração e o
simples título do livro resumem, no entanto, tudo o que concebo como
existência: o exercício de respirar e me manter acima da linha da água, para
não me afogar em meus próprios pensamentos, problemas e conjecturas.
À primeira vista parece um livro de autoficção, no qual o autor reconta uma
história pessoal, para elaborar, digamos, um colorido atraente ao leitor,
manipulável como um melodrama. A frase de Karl Ove Knausgård, o grande
nome da autoficção no mundo, escrita na capa da edição brasileira (Alfaguara,
2020, 272 págs), induz a essa ilusão: “O mais instigante autor vivo.”
A ilustração dialoga em sua simplicidade com o (s) conceito (s) de ioga, que
Carrère, 67 anos, habilmente desfia como um longo fio ligado ambiguamente
ao conhecimento oriental da ioga e à vida do autor em diversas fases que vão
e voltam na narrativa, iniciada pelo retiro do qual ele participa com o objetivo
ambíguo de se aprofundar na sua própria existência, assim como também no
exercício de contar tudo o que viu e vivenciou, como um repórter que banaliza
algo que tem um propósito espiritual complexo. Carrère é também jornalista e
documentarista, indo com certa obsessão às minúcias de sua psique e dos
ambientes que descreve.
Desde o início esse olhar curioso, envolvido, ao mesmo tempo reverente e
mundano, me fascinou e horrorizou: como é possível que alguém se disponha
a dar um mergulho em si, em um lugar isolado, em companhia de outras
pessoas para quem não pode sequer dirigir uma palavra ou olhar, e queira
conspurcar isso como se fosse uma participação em um reality show? O livro,
no entanto, é bem mais que isso, com rupturas provocadas por fatos da vida do
próprio autor, que lida com seus altos e baixos, sua bipolaridade, que é como
um gol contra a cada nova iniciativa tomada.
O livro é organizado em cinco partes longas, que se autodividem em trechos
curtos, como se fosse um diário em que o autor não tem cerimônia ou
autopiedade em se despir. O mais curioso é que mantenho o livro comigo há
mais de um ano e o leio com a lentidão que alguns mestres do tai chi chuan
recomendam a Carrière à certa altura, associando suas reflexões à minha
própria experiência com meditação, as ocasiões sempre renovadas de ir mais e
mais fundo na mente para aquietá-la, como quem se autodomestica. “Tudo
aquilo a que nos dedicamos com seriedade e amor,do kung-fu à limpeza de
motocicletas, pode ser caraterizado como ioga”, escreve Carrère, como um
autor hábil em desconstruir dogmas a partir de sua própria vida, correndo o
risco de criar outras fórmulas. No entanto, é essa desobediência que me faz
seguir adiante no livro, devagar e sempre, para postergar a finalização dessa
leitura com uma comparação à minha trajetória de autodescoberta e criação,
tão próxima e diversa da dele, como se fizesse da leitura um exercício de ioga
em que inspiro a narrativa e expiro minhas interpretações neste espaço virtual
exíguo. “Fazendo, fazendo, um dia feito.” Lembro das palavras do mestre
indiano Lahiri Mahasaya, para este exercício de quem lê e (ainda) não pode
parar de escrever.
DEVAGAR E SEMPRE
