É possível rir da dor? Eu sempre tento fazer isso, pelo menos com a minha dor, ainda que às vezes esse esforço pareça mais um meio sorriso do que uma gargalhada. O último mês, vivido sob o jugo do vírus herpes zóster e de uma crise de síndrome do intestino irritável, foi para mim um exercício de humildade, paciência e resignação. Em meio à preocupação com a vacina para covid, ignorei completamente a campanha para o herpes zóster, que pode ressurgir nos corpos de todos que um dia que tiveram catapora. Não vou comparar com outras dores minhas ou alheias, só digo que foi paralisante. Agora já respiro com um pouco mais de tranquilidade.
Não havia muito a fazer senão tomar os medicamentos para o herpes, que não minimizavam significativamente a dor, mas me trouxeram à lembrança as sagas de Jó, o devoto inquebrantável diante do Deus implacável do velho Testamento, e de Frida Khalo, a artista plástica mexicana que transmutou seus problemas de saúde em uma espécie de diário imagético surrealista. Relembrei também do filme “Dor e Glória”, de Pedro Almodóvar, em que um personagem em crise, alter ego do diretor espanhol, passa por exames para escanear seus sofrimentos físicos, enquanto relembra episódios de sua vida e trajetória no cinema.
A referência mais evidente sobre a dor para mim, no entanto, são os versos de Mário de Andrade no poema “Rito do Irmão Pequeno”, dedicado a Manuel Bandeira:
Chora, irmão pequeno, chora
Porque chegou o momento da dor.
A própria dor é uma felicidade…
Durante meu doutorado em Literatura Comparada, dedicado à correspondência de Mário e Carlos Drummond de Andrade durante os anos 1920, eu já tinha implicado com esse verso com caráter de oximoro e algo de masoquista:
“A própria dor é uma felicidade…”
O verso mereceu várias explanações de Mário ao amigo mineiro, como cabe a um verso que se desdobra a partir da existência, mas é também uma síntese de estoicismo perante o inevitável.
Desde esse período de pesquisa intensiva percebia que a vocação de Mário, algo soturna, diferia da minha teimosia de me dissociar da dor sem aspirar à felicidade, termo um tanto ilusório em suas promessas simbólicas e materiais. Quem sabe um dia retornarei à análise das dores de Mário expressas em sua poesia e correspondência, como uma maneira de refletir sobre a minha própria dor que, à parte os maus tratos ao corpo, também faz pensar que toda existência é natureza e aniquilamento.