Em 1959, o Brasil cantarolava “A noite do meu bem”, samba-canção de Dolores Duran impregnado de romantismo e alegria de um amor que tinha demorado a chegar. O rádio ainda era o principal meio de comunicação do país, que o presidente Juscelino Kubitscheck queria alçar a um plano ambicioso de industrialização, em ações que tinham como lema “50 anos em 5”. O Rio de Janeiro vivia seu último ano como capital federal da República e a cantora carioca, infelizmente, morreu em 24 de outubro. Hoje, a noite do “meu bem” é outra bem diferente.
Na última semana, 68 anos depois da canção ter estourado nas rádios, o que o país comenta é a morte da milionária Odete Roitman, personagem interpretada com uma pita cômica pela atriz Débora Bloch no duvidoso remake da telenovela “Vale Tudo”, originalmente escrita por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, e exibida com enorme repercussão entre 16 de maio de 1988 e 6 de janeiro de 1989. Recém-saído da ditadura, o país estava preparando sua nova constituição e tinha como presidente José Sarney, alçado ao cargo maior da nação depois da morte súbita de Tancredo Neves em 1985. Em sua nova versão, a personagem Odete incorporou o “meu bem” quase como um cacoete, quando na novela original Beatriz Segall carregava na ironia e distanciamento com todos que lidavam com ela. Tratava-se de uma questão vertical: a atriz, de verve teatral, colocava a personagem no topo detestável das elites, mas o impacto de suas falas resiste.
Agora, o capítulo do assassinato da milionária, exibido em 06 de outubro e ambientado no luxuoso Copacabana Palace, tentou imitar clássicos de suspense com vários personagens indo ao encontro da vítima em trajetórias errantes. A lista de suspeitos inclui boa parte do elenco principal, inclusive os “brothers” César (Cauã Reymond), marido-boy da madame, e seu fiel parceiro Olavinho (Ricardo Teodoro). Todos tinham motivo para matar, mas as pistas são tantas que cansam o telespectador, assim como a falta de verossimilhança nas cenas que mostram o marido (César) dormindo longe dela na noite do crime e depoimentos de suspeitos sem advogado.
Nos anos 1980, a telenovela era um gênero popularíssimo, com fama herdada da radionovela, da qual aproveitou muitos de seus atores. Ao ser escolhida como remake para 2025, a nova versão de “Vale Tudo” pretendia ser uma homenagem aos 60 anos da Rede Globo. Já em seus capítulos finais, o que se viu na tela uma versão livremente adaptada do original e não propriamente um remake. A escolha do elenco já foi polêmica e Bella Campos como Maria de Fátima é uma escalação equivocada que mais reflete o ocaso do padrão Globo de qualidade. Particularmente, me divertia com a ideia de uma continuação da trama de 1988 na qual Maria de Fátima (Glória Pires) ressurgiria como uma megera de nossos dias, mas imitando o modus operandi de Odete Roitman, sua arqui-inimiga. Na versão de Manuela Dias – ou Manu Days, como foi apelidada nas redes sociais –, o conflito original entre as personagens Raquel e Odete foi esvaziado porque a autora sumiu com a primeira, bem representada por Taís Araujo, dando a entender que a atriz estava ali apenas para constar e – estranhamente – cumprir uma espécie de cota racial. Desrespeito para com a ideia de representatividade negra, mas com o merchandising rolando solto.
Em seus últimos dias de exibição, a novela fatura alto no “merchan” e nos comerciais, ainda que o “quem matou Odete Roitman?” lembre mais “A próxima vítima”, novela de Sílvio de Abreu, do que o constraste entre o caráter das personagens Raquel, a mocinha, e Odete, a vilã. Não ficarei surpreso se a teledramaturgia superficial do texto optar por mostrar Odete viva, escapando para algum paraíso fiscal, ou se trouxer à tona algum ex-amor da milionária (como o personagem Walter, interpretado por Leandro Lima) retornando armado para pedir pensão. A teledramaturgia, infelizmente, está em baixa, mesmo que as curtidas das redes sociais sejam milhares.