Nada mais contraditório do que pensar em uma crônica sobre a eternidade. Gênero
curto e mal falado, baseado no cotidiano, a crônica, em geral gaiata, não é afeita a
temas grandiosos, ao contrário da poesia, sua irmã mais velha, chegada ao amor, à
morte, à paixão – tudo que leva o humano ao seu limite –, e com quem tenho uma
familiaridade antiga. Eis que me vejo pensando na passagem do tempo, na
fugacidade, tentando fugir da citação a filósofos, porque isso não é do meu feitio. A
passagem do tempo, neste caso, não tem a ver com nenhuma ruga nova que me
assombrou ultimamente, nenhum pensamento para posteridade, mas com uma
prosaica agenda (de papel) já lotada no início do ano.
“Janeiro infinito” (como dizem por aí) já passou e de uma hora para outra sou
transportado pelo tempo para 05 de março de 2025, daqui a um mês. É um exercício
que faço quando tenho muita coisa para fazer: me transporto para o futuro, quando
meus limites de prazo terão todos sido superados. Superados com sucesso, claro. Vou
me explicar.
O que eu queria falar há tempos é do livro “Ainda estou aqui” (editora Alfaguara,
2025), de Marcelo Rubens Paiva, e de sua adaptação para o filme homônimo, dirigido
por Walter Salles, com Fernanda Torres no papel de Eunice Paiva, ao qual assisti no
primeiro final de semana do ano. Tenho uma estranha proximidade com a atriz,
porque, há quase 40 anos, na extinta revista BIZZ, da editora Abril, onde trabalhava,
escrevi um pequeno perfil onde tratava de seu sucesso precoce e futuro promissor. No
entanto, depois disso nunca mais escrevi sobre ela. O tema deste livro e do filme tem
tudo a ver com a ver com o tempo visto a partir da história da trajetória de Eunice
Paiva, essa figura que ganhou notoriedade na vida pública brasileira depois do
desaparecimento de seu marido, o ex-deputado Rubens Paiva, levado por agentes da
repressão de sua casa no Leblon, no Rio de Janeiro, em janeiro de 1971, e para onde
nunca mais voltou.
Se o livro “Ainda estou aqui”, escrito por Marcelo Rubens Paiva, filho do casal, é uma
espécie de biografia com poucas concessões dessa mulher que se transforma
radicalmente depois do desaparecimento do marido, volta a São Paulo com seus cinco
filhos, se torna advogada e defende indígenas, com ampla atuação nos direitos
humanos, o filme dá destaque à sua vida familiar. Em uma escrita que não é muito
complacente com a mãe em sua faceta afetiva, Marcelo Rubens Paiva dá relevo à sua
trajetória em busca de esclarecimentos para o desaparecimento do pai, fato até hoje
insuficientemente esclarecido.
O filme, de grande repercussão internacional e premiação de Fernanda Torres como
melhor atriz do prêmio Globo de Ouro, prefere um ponto de vista da crônica familiar
interrompida pelo regime militar brasileiro, onde a comemoração dá lugar ao medo. A
adaptação do livro para a tela investe mais na atmosfera idílica de um Rio de Janeiro
classe média alta, com casa em frente ao mar, do que na trajetória de Eunice para ter
o reconhecimento da morte do marido, o que causa algum estranhamento. Ao invés de
detalhes da luta de Eunice quando deixa o Rio se apertando no carro com seus cinco
filhos, o filme faz uma passagem de tempo (olha ele aí de novo) de 25 anos e mostra
Eunice indo com os filhos ao Fórum de São Paulo para receber o atestado de óbito do
marido, em 1996. Para mim, o filme poderia ter parado ali, como uma grande estrada
aberta que o espectador preencheria as lacunas com pesquisas. Não há dúvida que
um filme baseado em fatos reais é sempre uma disputa entre o real e o imaginário.
No livro, a frase “Ainda estou aqui” é um mote de Eunice Paiva ao perceber os
primeiros sinais do Alzheimer, o que é suprimido do filme. Como em “Diários de
Motocicleta” (2004), também de Walter Salles, em que vemos o personagem de Che
Guevara antes de se tornar um guerrilheiro, também neste filme encontramos uma
Eunice Paiva mais ligada à família do que à luta política. A interpretação de Fernanda
Torres surpreende por ser contida e marcada pela perplexidade, mas o roteiro não nos
propicia seus embates na vida pública durante a ditadura, como no livro.
Na carreira do filme nos prêmios internacionais, me tornei apenas espectador torcendo
por Fernanda Torres, e os matizes críticos ficam em segundo plano. Mas em 2 de
março já saberemos do resultado da disputa do filme por três prêmios Oscar, e será
possível deixar as polêmicas de lado para nos aprofundarmos nessa história que mexe
tanto com o passado e o presente do país. Para quem quer ir além e apostar mais na
investigação documental com linguagem literária, há o livro “Segredo de Estado: o
desaparecimento de Rubens Paiva” (2011, editora Objetiva), de Jason Tércio, que
ainda pretendo ler, quando o tempo for mais camarada.