Não sou muito de me impressionar com datas exatas, mas passei a fazer um
flashback automático da minha trajetória depois de me dar conta de que vou completar
trinta anos no Rio de Janeiro. Cheguei aqui em 31 de julho de 1995 para cumprir a
inesperada tarefa de trabalho de encontrar um editor-chefe para a revista Contigo! na
sucursal da cidade. Na falta de um candidato que fosse considerado ideal, fui
convidado a assumir o posto, no qual permaneci por um ano e meio. De alguma
maneira, intuí que aceitar isso seria a plataforma de lançamento para a saída da
revista, que eu almejava em segredo, farto da rotina de lidar com pessoas famosas, ou
celebridades, como ficou consagrado na época, depois do lançamento com esse título
de um filme de Woody Allen e uma novela de Gilberto Braga. Queria uma vida
diferente, mais voltada para o estudo e a literatura. E foi o que eu, com muitos
percalços, consegui fazer desde então, com passagens pelo mundo da TV, como
roteirista no Telecine e no Canal Brasil. Mas nada é tão simples e daria um livro essa
dura passagem do Jornalismo para Letras.
Tentar resumir trinta anos em uma crônica, no entanto, reduz um pouco o que fiz, senti
e vivi desde então. Em função disso, busquei uma estratégia. No livro “A louca da
casa”, a escritora e jornalista espanhola Rosa Montero faz um balanço curioso de sua
relação com a escrita a partir de uma frase de Santa Teresa de Jesus: “A imaginação é
a louca da casa.” Em seu tom coloquial, a autora cita várias referências literárias,
comentando tanto a obra, mas também a vida de escritores e escritoras, sobretudo
romancistas, chamando atenção que cada qual escolhe uma espécie de marco para
suas lembranças. Alguns rememoram a partir de suas paixões, outros de coisas mais
tangíveis. Decidi aplicar isso aqui: lembrar do Rio pelos apartamentos em que morei
nessas três décadas.
Nos três primeiros meses na cidade, a partir de julho de 1995, vivi em hotéis, o que
era um paraíso artificial, pois me hospedei tanto no Marina Hotel (no Leblon) como no
Copa D’Or (em Copacabana), hospedagem de muitas estrelas e que a editora Azul
usufruía como permuta (um acordo comercial). Na verdade, o que em geral era bom,
poderia ser um pesadelo, pois muitas vezes me pediam de um dia para o outro para
fazer as malas e trocar de quarto. Ou, pior ainda, passar de um dos hotéis para o
outro. Mas eu não me desgastava, estava achando aquilo tudo uma grande novidade,
mesmo levando quase uma hora para chegar do Leblon ou Copacabana ao centro da
cidade, onde ficava a redação. Nessa época, em plena execução do Rio-Cidade do
prefeito Cesar Maia, a Zona Sul estava em obras e não existia a menor possibilidade
de estações metrô próximo aos hotéis.
Depois do primeiro mês no Rio, fui intimado pela minha chefia a alugar meu próprio
apartamento, mas isso não era tarefa fácil, pois tinha de ver os imóveis muito cedo, já
que o expediente era longo e eu mal conhecia a cidade. Comecei a pesquisar pelo
Leblon, mas os preços eram muito altos e os apartamentos, em geral, ruins. O
processo de tentar assinar um contrato era complexo e por duas vezes disseram que
estava tudo OK e misteriosamente apareciam outros locatários na minha frente.
Acabei alugando um apartamento espaçoso em Ipanema, mas extremamente
detonado e úmido, o que foi péssimo para minha sinusite e rinite, com a pedra da rua
Alberto de Campos quase colada nas janelas. Dessa maneira, o apartamento ganhou
de mim e de uma amiga que foi passar uma temporada comigo o carinhoso apelido de
Caverna. O descaso do proprietário era tão grande que havia partes de um carro de
luxo (!) desmontado na sala. Ainda assim, tudo parecia valer a pena já que estava a
poucas quadras da praia, as festas da cidade eram muito divertidas, da Fundição
Progresso a um Carnaval Techno no Aterro do Flamengo. Vindo da Marginal
Pinheiros, onde ficava a redação da Contigo! em São Paulo, o Rio era um paraíso com
algum horizonte. Tinha 31 anos e estar aqui tinha sempre um ar de descoberta,
mesmo que eu não conseguisse nem ter um telefone no endereço de Ipanema (o que
renderia outra crônica).
Depois que saí da revista, em janeiro de 1997, o orçamento baixou bruscamente, pois
passei a fazer matérias como free-lancer e às vezes tinha de ir a São Paulo cumprir
algumas pautas. Desaluguei o apartamento de Ipanema e consegui um outro
minúsculo, mas muito claro e com dois quartos em Copacabana, na rua Domingos
Ferreira, propriedade de um aposentado da Marinha que às vezes me cobrava antes
do vencimento. Sim, logo percebi que a vida prática na cidade era um bordado de
complicações, com uma precariedade evidente disfarçada pela bela paisagem. Pela
janela do meu novo quarto eu via um trecho do mar e parecia que os navios
navegavam entre prédios. Esse era só vão livre muito curto, proporcionado pelo único
casarão que ainda restava na avenida Atlântica e ia até a minha rua. O apê era uma
caixa de fósforos, mas nele fiz uma das festas mais animadas da minha vida, fingindo
que era DJ. Fiquei lá por uns três anos, comecei minha a vida acadêmica, passei a dar
aulas, fiz amigos.
Escrito aqui o saldo parece um pouco melhor do que os “perrengues” que passei para
encontrar esses lugares todos, e também das tristezas que a vida traz, Um pouco
antes disso tudo, em 1996, perdi minha mãe e de uma maneira estranha a ausência
dela me deu impulso para lançar meu primeiro livro de poemas, “Águas
desnecessárias”, e não larguei mais da literatura. Depois de vários trabalhos, me
transferi para o Flamengo em julho de 2000, onde estou até hoje. Esses cenários de
moradia parecem tantos e ao mesmo tempo restritos, para quem, como eu, ainda acha
que estou no Rio de Janeiro em viagem, que tudo é passagem.