Karl Mor
Numa das cenas iniciais de “Bye bye Brasil” (1980), escrito e dirigido por Carlos Diegues, Lorde Cigano, o personagem de José Wilker, com todas as características do Mago do Tarô, afirma que vai realizar o maior desejo de todos os brasileiros. Na plateia do espetáculo mambembe estão pessoas que tentam adivinhar que desejo é esse. Eis que então Lorde Cigano para, eleva os braços, e flocos brancos começam a cair sobre o público extasiado. Ele observa que a neve é o grande sonho, a característica de todo país civilizado. Ao fundo “White Christmas”, com Bing Crosby, como se estivesse acontecendo uma sequencia paródica da coluna de 14 de dezembro deste ano.
“Terra estrangeira” (1996), dirigido por Walter Salles e Daniela Thomas, mostra um país em que o maior desejo está longe de ser a neve. No início da década de 1990, no Brasil dizimado pelo Plano Collor, muitos jovens querem simplesmente sobreviver e compreendem que para isso é preciso sair do país, já que este se tornou paradoxalmente uma terra estrangeira. Apesar da precariedade dos personagens, o filme é extremamente estetizado: cinematografia em preto e branco, como num inusitado noir. É bonito, mas talvez um tanto quanto esquemático. Algo muito distante da realidade fílmica de “Bye bye Brasil”, em que Cacá Diegues promove uma viagem ao Brasil profundo de uma forma crua, retratando sem medo e sem complacência o desejo de cada um nesta terra de dor.
Em 2023, é o caso de voltar a perguntar qual é o maior desejo de todos os brasileiros. Talvez seja o caso de dizer que a coisa esteja mais para “Terra estrangeira” do que para “Bye bye Brasil”. O desejo volta a ser (ou continua a ser) de sair do país, preferencialmente “para onde haja a neve da civilização”, como diria Lorde Cigano. Mesmo assim, em “Bye bye Brasil” já havia espaço para conhecer os brasileiros que não necessariamente vivem no Sudeste. Era, apesar da ditadura, uma época de liberdade comportamental, já que a aids ainda não ceifava vidas. Assim, o cinema brasileiro capta o espírito do tempo e deseja ser eterno enquanto dure na memória dos cinéfilos.