No pequeno jardim de uma das saídas do meu prédio, eu vi o cacto. Nunca tinha percebido a presença dele, já que está na lateral, e é possível passar por ali durante anos sem notá-lo, ainda que seja maior do que eu. Traz a marca que mais me chama atenção: não tem espinhos. Mesmo de longe, essa característica é perceptível e fui vê-lo de perto, erguido entre os seixos, como um mastro um pouco torto a desafiar a cidade. Logo me lembrei de um tipo de cacto sem suas defesas pontiagudas citado pelo mestre indiano Paramahansa Yogananda em “Autobiografia de um iogue”, em seu encontro com o botânico e horticultor estadunidense Luther Burbank. Famoso por criar enxertos de plantas, Burbank é conhecido sobretudo pela grande batata que leva seu nome.
Impossível tampouco não lembrar do poema famoso de Manuel Bandeira, publicado em 1930 no livro “Libertinagem”:
O cacto
Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária:
Laocoonte constrangido pelas serpentes,
Ugolino e os filhos esfaimados.
Evocava também o nosso seco Nordeste, carnaubais, caatingas…
Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades excepcionais.
Um dia um tufão furibundo abateu-o pela raiz.
O cacto tombou atravessado na rua,
Quebrou os beirais do casario fronteiro,
Impediu o trânsito de bondes, automóveis, carroças,
Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro horas privou a cidade de iluminação e energia:
– Era belo, áspero, intratável.
(Petrópolis, 1925)
Várias ideias me ocorrem ao reler o poema de Bandeira e uma delas é bastante prosaica: o cacto do poeta vai fazer cem anos. Acredito que um evento inteiro poderia ser pensado em função do aniversário deste poema notável em seu duplo caráter de simplicidade e erudição. Dividido em duas estrofes, o poema é marcado inicialmente pela comparação da planta ao desespero da tragédia, trazendo associações inusitadas com as famosas estátuas de Laocoonte (personagem da Guerra de Troia) e de Ugolino (tirano imortalizado na “Divina Comédia”, de Dante Alighieri). Na mesma estrofe, Bandeira evoca a presença do cacto no Nordeste, certamente da espécie Mandacaru, como seu companheiro do jardim aqui no térreo. Na segunda estrofe, o poeta usa a força da catástrofe para descrever a queda da planta em contraste com a vida urbana, chegando a um verso-síntese do caráter de resistência do cacto, “belo, áspero, intratável.”
Próximo do centenário, o cacto de Manuel Bandeira permanece na poesia brasileira como símbolo de resistência da natureza diante da brutalidade da cidade e de seus humanos implacáveis, conclamando sua excentricidade e força únicas, como uma relíquia de ecos românticos de um modo de vida mais próximo da natureza, em meio a seu desaparecimento. Que seu parente do meu jardim possa ser tão bravo e altivo.