Diante da minha barba completamente branca, os médicos não se furtam de dizer que já estou “em certa idade”. Querem deixar evidente que não posso mais me dar ao luxo de descuidar de boa alimentação, sono, exercício físico e exames periódicos. Tudo pode soar melancólico se me deixo levar pela preocupação e não tomo as providências necessárias. Mas também é um tema literário que me fascina, desde “Memórias de Adriano”, de Marguerite Yourcenar, sobre o imperador romano que rememora sua vida, a poetas diferentes cargas de ironia e nenhuma autopiedade. Autopiedade, aliás, arrasa com qualquer projeto de vida, e em literatura rende poemas óbvios e ficção açucarada.
No poema “At certain age”, do polonês Czeslaw Milosz, a surpresa da passagem do tempo se dá diante do espelho. Improviso aqui uma tradução do inglês:
EM CERTA IDADE
Queremos confessar nossos pecados, mas não háquem nos ouça.
Nuvens brancas se recusam a aceitá-los, e o vento
Está muito ocupado percorrendo mares.
Não despertamos o interesse dos animais.
Cães, desapontados, esperam uma ordem.
Um gato, sempre imoral, cai no sono.
Uma pessoa aparentemente próxima
Não se importa em ouvir coisas de um passado distante.
Conversas entre amigos regadas a vodca ou café
Não deveriam ser prolongadas ao primeiro sinal de tédio.
Poderia ser humilhante pagar por hora
Um homem com diploma, apenas para ouvir.
Igrejas. Talvez igrejas. Mas ir lá para confessar
o quê?
Que costumávamos ver a nós mesmos como lindose nobres
Enquanto hoje em nosso lugar um sapo feio
Entreabre as pálpebras pesadas
E diz claramente: “Sou eu.”.
O poema de Milosz percorre com algum desespero e tom prosaico o pensamento de um sujeito lírico que busca interlocução em um confessor, na natureza, nos animais e a quem só resta o consolo de um psicólogo para ouvir seus queixumes, até que chega ao espelho e constata sua própria imagem envelhecida. É como se o indivíduo estivesse em busca de companhia, mas constatasse que só resta a si mesmo, convertendo essa procura em desolação ou, de um ponto de vista mais otimista, em autoconhecimento. Como quase sempre na poesia de Milosz, a materialidade conduz a uma inevitável transcendência, que sobrepõe a qualquer estado de negação.
Esse olhar no espelho do poema remete também ao mito de Narciso, personagem da mitologia grega que se apaixona por sua própria imagem refletida num lago, que ganhou sua representação mais famosa na pintura de Caravaggio durante o Barroco italiano. Narciso não consegue se desligar do fascínio de sua própria imagem e se autodestrói. Fascínio semelhante é exercido pelo protagonista do romance “O retrato de Dorian Gray”, de Oscar Wilde, que busca a juventude eterna, mas o que encontra é apenas o horror de sua própria decadência. Como ir além do espelho, com uma imagem bela ou decadente, é uma pergunta que as artes, em especial a literária e visual, não param de indagar, suscitando novas obras que perscrutam a aparência humana, mas também um significado imaterial.