“O Agente Secreto”, novo filme do cineasta Kleber Mendonça Filho, é um acontecimento nas telas e fora delas. Assisti ao longa-metragem em seu dia de estreia, ansioso para entender o que tanto encantou o júri do Festival de Cannes, que deu ao filme os prêmios de melhor ator para Wagner Moura e de melhor diretor para Kleber. Para mim, o que chama atenção é sobretudo a ambientação da história em 1977, em Recife. São múltiplas referências cinematográficas temperadas com sotaque pernambucano, como uma miscelânea imagética e sonora que surpreende pelo olhar do diretor-roteirista. É um legítimo filme de autor, como queria a Nouvelle Vague francesa, de Jean-Luc Godard, mas é também Cinema Novo à moda de Glauber Rocha. A diferença é que o sertão de Kleber é a cidade grande.
O labirinto dramático elaborado por KMF é sujo de sangue, bebe da fragmentação de Quentin Tarantino, e ri de si mesmo quando usa a notícia policial sobre a perna cabeluda (criada pelo então jornalista e atual escritor Raimundo Carrero) quase como um curta-metragem dentro do filme, que promove o caos em uma praça onde todos praticam o sexo livre. Isso é apenas uma das várias subtramas que o filme oferece, seja na sala de projeção do famoso Cine São Luiz, no centro de Recife, ou pelos mini-retratos de coadjuvantes que recheiam o roteiro.
A trama principal sobre o personagem Armando (codinome Marcelo), interpretado por Wagner Moura (sempre correto, mas sem exageros) vai emergindo de modo quase casual no filme, em meio ao carnaval. O próprio enredo mimetiza a folia, expondo também a violência de 91 crimes em plena festa do prazer. A revolta política com a ditadura está ali e surge por uma fala do cinegrafista Alexandre (excelente atuação de Carlos Francisco), inconformado com as possibilidades do Brasil como um país justo no futuro, futuro que é o nosso presente.
Armando/ Marcelo (Moura) abre o filme chegando a um posto de gasolina poeirento onde ele quer apenas abastecer seu fusca amarelo, mas acaba vendo um cadáver insepulto e se depara com dois policiais em busca de propina. Demora até que o espectador descubra que ele é um ex-professor universitário fugindo da perseguição de um industrial envolvido na política, e isso, na verdade, é uma parte menos elaborada da história. Acontecem muitas ações que fazem com que essa trama seja apenas uma entre outras paralelas, incluindo a inspirada participação da atriz Tânia Maria, no papel de Dona Sebastiana, que rouba a cena com uma naturalidade que se impõe pela veracidade. Outras participações que destacaria são a dupla de assassinos interpretada por Roney Villela e Gabriel Leone, além de Kaiony Venâncio como uma espécie de jagunço urbano.
A direção e o roteiro se sobressaem do todo e autorizam do terrir ao terrível, em um contexto antropofágico em que cabem menções ao filme “Tubarão”, de Steven Spielberg, e o seu devido contraponto paródico: um tubarão assassino que esconde a perna de um corpo vitimado pela polícia. Isso não exime o filme de muito humor, às vezes como uma pornochanchada, outras vezes como um terror dos anos 1980 em que o sangue é só uma maneira de chamar atenção para o absurdo das situações vividas.
No que concerne ao eixo narrativo, usar duas pesquisadoras que retomam a história da perseguição a Armando/Marcelo só torna o longa um pouco mais convencional e em busca de um final, obtido com a inserção de Moura interpretando o papel de seu próprio filho. O Brasil não é um projeto que tenha se cumprido em suas promessas de grande nação, então esse fechamento sobra um pouco em um filme que tem o suprassumo do cafona na trilha sonora: “Eu não sou cachorro, não”, de Waldick Soriano. Ser hiperbólico e barroco, no entanto, está na própria essência do cinema de Kleber Mendonça Filho que, depois do documentário “Retratos Fantasmas”, se destaca como o mais promissor dos cineastas brasileiros.



