Hoje eu só quero falar sobre flash backs, que tenho tentado evitar, mas que estão em toda parte: nos filmes, nas séries, nos clipes que vejo no YouTube, nos vinis que recuperei do meu pai e da minha mãe e que finalmente ouço no toca-discos que comprei na promoção. Tenho implicado um pouco com esse eterno recuo das narrativas, quero seguir em frente, por mais que as estradas não sejam retas e peçam paradas, retornos. No inverno carioca que virou verão, o que me surge como uma madeleine de Proust não é literário, mas sim a a música “Meu mundo e nada mais”, de Guilherme Arantes, quando eu – literalmente – me entendi por gente. Tinha doze anos e, na trilha sonora da novela “Anjo Mau”, de Cassiano Gabus Mendes, em 1976, desejei ter um mundo próprio, longe da família, ser independente, exercer a rebeldia que minha mãe sempre enfatizou em mim. Minha adolescência começou oficialmente nesse dia.
Nem tudo, a partir daí, virou uma aventura do ego, ao contrário: li autores interessados no destino do país, como Fernando Morais em “A ilha” e “Henfil na China”, do cartunista Henfil, enquanto descobria a poesia de Carlos Drummond de Andrade, os contos de Clarice Lispector e, um pouco mais tarde, os poemas de Bertolt Brecht. Entre a busca por um sentido para a existência e a preocupação social, eu sempre escolhi os dois.
Nesta época em que a novidade não parece mais existir porque é inventada por inteligência artificial, o passado é uma grande fonte de recomeço seja pessoal ou coletivo. Conciliar a própria vida e os caminhos coletivos pode me tirar o sono, ainda mais em tempos tão instáveis da geopolítica. Toda vida nacional é passada em revista nos intermináveis processos brasileiros. Uma semana com muitas casas à frente, outra semana com ratos políticos em busca da autopreservação de seu próprio ninho. Em qual subjetividade se perde o sujeito contemporâneo que faz selfies e ainda pensa nos destinos do país? Releio Hilda Hilst (HH) em sua obra completa onde a subjetividade marca encontro com o social:
Tudo vive em mim. Tudo se entranha/ Na minha tumultuada vida. E porisso/ Não te enganas, homem, meu irmão,/ Quando dizes na noite que só a mim me vejo./Vendo-me a mim, a ti./ E a esses que passam/ Nas manhãs, carregados de medo, de pobreza,/ O olhar aguado, todos eles em mim,/ Porque o poeta é irmão do escondido das gentes (…)”
A poesia de HH busca o elevado e não teme a materialidade do corpo de modo sofisticado, com um olhar cúmplice em relação ao outro e também (ou principalmente) aos animais. Não é à toa, que sua morada em Campinas, na famosa Casa do Sol, recentemente restaurada, abrigou muitos cães em atmosfera ao mesmo tempo simples e reverente. Penso em recuperar as fotos quando visitei a casa há muitos anos, vi as árvores, vi os bichos, e me disseram que alguns ainda eram da época de Hilda. E assim eu conheci a escritora pelos olhos deles e das árvores sob as quais ela tinha andado. Tinha algo de indiano naquele lugar, um dia ainda volto por lá. Se os flash backs são inevitáveis, que pelo menos incluam mais poesia.