“Anora” (2024, Prime), filme escrito e dirigido por Sean Baker, o grande ganhador do Oscar deste ano, retoma uma tradição tão cara ao cinema: o retrato da prostituta. Em Hollywood, a profissional do sexo geralmente tem uma vida glamourizada, bem distante da realidade tantas vezes miserável da meretriz no cotidiano das metrópoles. O estadunidense Baker (1971) consegue um certo equilíbrio entre o real e o idealizado. Seu cinema independente tem estado sempre próximo dos personagens marginalizados. “Eu me tornei amigo de profissionais do sexo e compreendi que havia um milhão de histórias naquele mundo. Se há uma tendência nesses meus filmes é a de contar histórias humanas, que são provavelmente universais. É uma forma de remover o estigma que tem sido imposto a sua existência”, declarou. “Anora” conta com a performance esplêndida de Mikey Madison no papel-título, uma trabalhadora sexual que parece ter encontrado a sorte grande ao casar com um jovem cliente rico. O caos da vida real, no entanto, chega para atrapalhar o conto de fadas. O filme tem uma notável combinação de comédia e drama, em que Anora nunca aparece como vítima. É uma história de coragem que marca tanto o percurso do cineasta quanto o da protagonista.
A representação da prostituição em “Anora”, filme indie, revela uma certa evolução no cinema mais próximo a Hollywood. Dentro e fora da indústria do entretenimento, contudo, outras obras abordaram o tema com extrema originalidade
O gênio italiano Federico Fellini (1920-1933) escreveu e dirigiu “Noites de Cabíria” (1957), com a inesquecível Giulietta Masina, então esposa do cineasta, como protagonista. Cabíria é uma prostituta ingênua e sonhadora que, apesar de constantes desilusões e de sua vida nas ruas de Roma, mantém uma fé inabalável no amor e na felicidade. Em seu esforço para que sua dignidade seja reconhecida, ela se torna um símbolo da resistência humana em um mundo hostil. O filme teve uma adaptação estadunidense em 1969: o musical “Charity, Meu Amor”, dirigido e coreografado por Bob Fosse, com Shirley MacLaine no papel-título.
Shirley, aliás, é a estrela de “Irma La Douce” (1963), de Billy Wilder (1906-2002). Contracenando com Jack Lemmon, ela vive Irma, uma prostituta parisiense de coração generoso. O personagem de Lemmon é o de um policial que se apaixona por ela e, como não quer que Irma esteja com outros homens, inventa um alter-ego para ser seu único cliente. O filme foi originalmente concebido em 1962 para Marilyn Monroe, que assim voltaria a fazer par com Jack Lemmon, com quem havia trabalhado em “Quanto Mais Quente Melhor”, também dirigido por Wilder. Com a morte de Marilyn, Shirley MacLaine foi escolhida para o papel.
Baseado no romance de Joseph Kessel, “A Bela da Tarde” (1967, Cindie) foi um dos magníficos trabalhos do cineasta espanhol Luis Buñuel (1900-1983) em parceria com o roteirista francês Jean-Claude Carrière (1931-2021). O título joga com a expressão “bela da noite”, que designa “prostituta” em francês, e também com Glória-da-Manhã, flor que dura uma única manhã e morre à tarde. Catherine Deneuve, a grande dama do cinema francês, interpreta Séverine Serizy, uma jovem burguesa que, por não conseguir partilhar intimidade física com seu marido, busca secretamente redenção e saber ao trabalhar como prostituta em um bordel de luxo no turno da tarde.
Contrariando as melhores expectativas, as décadas de 1970 e 1980 não foram especialmente alvissareiras para as profissionais do sexo no cinema. O mito ressurge em “Uma Linda Mulher” (1990, Disney+), dirigido pelo estadunidense Garry Marshall (1934-2016), com roteiro de J.F. Lawton. É o filme que transforma Julia Roberts em uma superestrela, como Vivian Ward, a prostituta virtuosa. O conto de fadas conta inevitavelmente com um príncipe, ou melhor, com o empresário Edward Lewis, interpretado por Richard Gere. A fantasia que “Anora” desafia “Uma Linda Mulher” leva às últimas consequências. Vivian, uma prostituta de Los Angeles, é contratada na rua por um empresário riquíssimo, e tudo termina em um inusitado romance feliz.
Já o vibrante e extravagante “Moulin Rouge: Amor em Vermelho” (2001, Disney+) é um filme dirigido pelo australiano Baz Luhrmann (1962), que co-escreveu o roteiro com Craig Pearce. Na Paris de 1900, a cortesã Satine (Nicole Kidman) é a grande estrela do famoso cabaré parisiense. Ela vende seu tempo, sua companhia e seu afeto a homens ricos, mas mantém uma fachada de glamour enquanto sonha em ser tornar uma atriz. Em meio às bizarrices da trama, Satine também encontra o amor romântico, na figura de Christian (Ewan McGregor), um jovem escritor.
Em décadas de cinema, o personagem da prostituta tem encontrado uma representação predominantemente favorável. Muitas são mesmo glorificadas como semideusas ou beneméritas. Talvez seja essa uma fantasia masculina. Afinal, foram Sean Baker, Federico Fellini, Billy Wilder, Luis Buñuel, Garry Marshall e Baz Luhrmann que deram vida às profissionais do sexo abordadas aqui. Oportunamente será o caso de compreender a visão das mulheres cineastas desse complexo fenômeno. Isso deve mudar tudo.