O documentário “O Legado de Sidney Poitier” (2022, Apple TV+), produzido por Oprah Winfrey, escrito Jesse James Miller e dirigido por Reginald Hudlin, é obrigatório para compreender a grandiosidade desse ícone do século XX, como ator, diretor e ativista. Sidney Poitier (1927–2022) nasceu em Miami, Flórida (EUA), mas foi criado por sua família nas Bahamas. O local de nascimento lhe proporcionou a cidadania estadunidense, mas o arquipélago caribenho fez dele um homem notável.
“O Legado de Sidney Poitier” não é um mero documentário de homenagem. Trata-se de uma narrativa biográfica complexa, em que o retrato do indivíduo serve como chave para compreender transformações sociais mais amplas. Foi graças à admiração e à reverência de Oprah por Poitier que o filme surgiu. Ela esteve envolvida desde a concepção do projeto e captação dos depoimentos até a definição do tom narrativo.
No filme “Adivinhe Quem Vem para Jantar” (1967, Amazon), dirigido por Stanley Kramer, o personagem de Sidney Poitier, Dr. John Prentice, tem uma discussão com seu pai (interpretado por Roy Glenn Sr.) sobre as barreiras raciais e como cada pessoa lida com elas. John diz para o pai:
“Você pensa em si mesmo como um homem negro. Eu penso em mim como um homem.” (No original em inglês: “You think of yourself as a colored man. I think of myself as a man.”) A fala provavelmente sintetiza o modo de Sidney Poitier estar no mundo: alguém que sempre lutou por dignidade e igualdade, mas insiste em ser reconhecido primordialmente por sua humanidade.
A ascensão de Poitier em Hollywood foi um exemplo de resistência e coragem. Ele não aceitava papéis subservientes e tinha consciência do significado social de sua atuação. Tornou-se o primeiro ator negro a vencer o Oscar de Melhor Ator, por “Uma Voz nas Sombras” (1963, Looke). Viveu o professor de “Ao Mestre, com Carinho” (1967, Amazon) e o detetive de “No Calor da Noite” (1967, Prime). A cada filme, desenvolveu um estilo elegante, sereno, mas intransigente diante do desrespeito.
Não se limitou ao palco e à tela. Foi também um dos primeiros negros a ocupar a função de diretor em Hollywood com sucesso comercial. “Loucos de Dar Nó” (1980, Sony), por exemplo, foi um grande êxito de bilheteria.
O documentário “O Legado de Sidney Poitier” não se furta a tratar de situações controversas na trajetória do grande ator, como a vida amorosa. Ele teve uma relação intensa e complicada com a atriz e cantora Diahann Carroll, pioneira na televisão com a série “Julia” (1968-1971) e figura central na luta por representatividade negra. Símbolos de ascensão racial em uma sociedade hostil, Diahann e Sidney protagonizaram um relacionamento de paixão e dilemas éticos, mas também o encontro de trajetórias militantes: os dois usaram visibilidade e talento como instrumentos políticos no combate à discriminação.
Houve também um grande amigo: o artista estadunidense Harry Belafonte (1927-2023), filho de imigrantes jamaicanos. Os dois se conheceram na juventude em Nova York, quando participaram do grandioso Teatro Negro Americano. Juntos financiaram ações do movimento pelos direitos civis, marcharam ao lado de Martin Luther King Jr., viajaram ao Sul segregado, auxiliaram organizações clandestinas, arriscaram sua segurança para apoiar ativistas.
O documentário pretendia apresentar o legado de Sidney Poitier e cumpre isso ao retratar o ator monumental, diretor pioneiro e ativista pela dignidade humana. Um artista que compreendeu o cinema como arena moral e política. O filme produzido por Oprah Winfrey deu o devido destaque à grandeza de Poitier, combinando criativamente ternura e rigor histórico. Mais do que apenas lembrado, ele é reconhecido como um herói da liberdade.



