Fernanda Montenegro, ou melhor, Arlette Pinheiro Esteves da Silva nascida em 16 de outubro de 1929, em Madureira, no subúrbio do Rio de Janeiro, tem construído como atriz uma das carreiras mais inspiradas do Brasil. Sua atuação no teatro, na televisão e no cinema serve de referência para os outros profissionais da área, iniciantes ou veteranos. Aqui a escolha é abordar apenas uma parte de sua contribuição profissional: os principais filmes de sua trajetória artística.
Em “A Falecida” (1965), filme dirigido por Leon Hirszman, a partir da peça de Nelson Rodrigues, Fernanda interpreta Zulmira, mulher de origem humilde, casada com Tuninho (Ivan Cândido), que planeja seu próprio enterro como ato final de dignidade em meio à pobreza em que vive e à indiferença do marido. Inserida no movimento do Cinema Novo, a obra combina crítica social, mal estar doméstico e realismo psicológico. Fernanda reencontrou aí a dramaturgia de seu amigo Nelson Rodrigues, que escreveu para ela a peça “Beijo no Asfalto”, encenada em 1962, com direção de seu marido, Fernando Torres. A peça, aliás, teve duas versões cinematográficas: em 1980 e 2018.
O genial “Tudo Bem” (1978, Globoplay), criação fílmica de Arnaldo Jabor como roteirista e diretor, deu a Fernanda Montenegro provavelmente sua interpretação maior no cinema. Ela vive Elvira Barata, esposa de Juarez (Paulo Gracindo), casal carioca remediado que decide reformar seu apartamento em Copacabana. O filme funciona como sátira, retratando o colapso de uma família pequeno burguesa durante a ditadura militar em seus conflitos geracionais e sociais. Elvira é uma observadora irônica do caos ao redor, transitando entre humor, frustração e resignação. Jabor dirige sem medo do improviso e permite que a atriz construa seu personagem com sagacidade, leveza e senso crítico. A excelência da participação de Fernanda nesse extraordinário marco da história do cinema nacional talvez não tenha alcançado o seu devido reconhecimento.
Admirável ato de coragem em meio a um período em que o espectro ditatorial ainda imperava e mais uma parceria do diretor Leon Hirszman com Fernanda Montenegro: “Eles Não Usam Black-Tie” (1981, Globoplay), adaptação da peça de Gianfrancesco Guarnieri, que também atua no filme como Otávio, marido da personagem de Fernanda. Romana (Fernanda Montenegro) é dona de casa confrontada com as greves do ABC paulista (1978-1980). Aflita, ela testemunha o conflito entre seu marido e seu filho Tião (Carlos Alberto Riccelli) diante das escolhas políticas e sindicais. Romana busca um equilíbrio no ambiente familiar, como se um elo entre gerações fosse possível. Esse novo encontro de Fernanda e Hirszman reafirma uma ética de trabalho do Cinema Novo já presente em “A Falecida”: as questões sociais abordadas por meio da história íntima dos personagens. Eis aí um espaço ideal para Fernanda, atriz consagrada que nunca abriu mão de um certo compromisso político.
O público mais jovem pode até pensar que a presença de Fernanda Montenegro no cinema nacional se dá a partir de “Central do Brasil” (1998, Globoplay), de Walter Salles. No entanto, antes desse pungente melodrama, ela já havia feito 15 filmes, alguns deles obras- primas da cultura brasileira, como as colaborações com Hirszman e Jabor. Mas foi com esse filme que Fernanda alcançou reconhecimento internacional. Nele ela interpreta Dora, ex-professora aposentada e cambalacheira que escreve por dinheiro cartas para analfabetos na Estação Central do Brasil, na cidade do Rio de Janeiro. Ela não envia essas cartas. Um dia, por um repentino sentimento de culpa, assume a missão de levar o menino Josué (Vinícius de Oliveira) até seu pai no sertão nordestino. Há, assim, uma retomada do cenário e do espírito do Cinema Novo graças ao talento de Fernanda.
Mais recentemente, Fernanda Montenegro voltou a brilhar nas telonas. Em “Vitória” (2025, Globoplay), dirigida pelo genro Andrucha Waddington, ela interpreta Nina, mulher aposentada, mas inconformada, que resolve se dedicar à vigilância urbana e de súbito se vê eticamente obrigada a fazer denúncias, para seu próprio risco. Eis aí Fernanda, como de hábito, engajada com seu trabalho de atriz na defesa da cidadania e no questionamento do mundo contemporâneo, marcado por uma violência distinta daquela dos anos 1960.
Aos 96 anos de idade, Fernanda Montenegro mantém invejável vitalidade. Seu atual projeto é “Velhos Bandidos”, filme dirigido por seu filho Cláudio Torres, que deve ser lançado no ano que vem. Ela contracena com Ary Fontoura e interpreta uma idosa que, junto com o marido, decide realizar um assalto a banco.
A filmografia de Fernanda Montenegro registra certamente sua versatilidade de atriz, o seu talento camaleônico. Mas, além disso e talvez principalmente, representa a própria história do cinema brasileiro desde o Cinema Novo. É inevitável dizer mais: Fernanda deu visibilidade à mulher deste país e a seus desafios: a pobreza, o ambiente doméstico, o engajamento político, a sobrevivência na cidade, a velhice… Ela lega aos atores mais jovens e mesmo a seus concidadãos essa evidência de que o trabalho artístico é indiscutivelmente a base de qualquer sociedade.



