Karl Mor
A animação pode ser um meio excelente para transformar um documentário simples num adequado exercício cinematográfico. É o que mostra “Atiraram no pianista” (2023), dos diretores espanhóis Fernando Trueba e Javier Mariscal. Esse documentário de animação traz um uso intenso das cores e encontra soluções criativas para as passagens de uma sequência para outra. Trata-se da história de Francisco Tenório Cerqueira Júnior, ou simplesmente Tenório Júnior, nascido em 1940 no Rio de Janeiro e desaparecido em 1976 em Buenos Aires, unanimemente reconhecido como o pianista de samba-jazz mais influente de sua geração.
Para funcionar como fio condutor do documentário, os diretores criaram um personagem ficcional, o jornalista Jeff Harris. Ele é uma espécie de alter ego de Trueba: apaixonado por Bossa Nova, vem ao Rio para fazer um livro sobre música e fica obcecado com desaparecimento de Tenório Júnior. Com a ajuda de um amigo brasileiro, Jeff se encontra com familiares, amigos e colegas de Tenório Júnior em busca da decifração do mistério sobre o pianista.
Todos esses encontros de Jeff são entrevistas (39) feitas por Trueba na vida real. Os entrevistados são na maioria músicos, muitos deles figuras destacadas na bossa nova, no samba-jazz e suas reinvenções contemporâneas.
Também produtor musical, Trueba ganhou o Oscar de filme internacional em 1992 por “Belle Epoque”.
A atmosfera fantasiosa de um Rio de Janeiro de cartão-postal do início do documentário vai ganhando uma tensão irremediável quando o filme se volta para a investigação da brutalidade devastadora do terrorismo de estado. O colorido transforma-se num cinza de chumbo.
O desaparecimento de Tenório Júnior ocorreu em março de 1976, dias antes do golpe de estado que derrubou Isabel Perón. Conta-se que na cidade havia já o aspecto de uma zona de guerra. Uma carreira brilhante banhada pelo sol do Rio de Janeiro termina no breu de uma madrugada argentina.